Eu sinto pena da Clara dos Anjos,
especialmente porque nem personagem principal da história é de fato. Pouco se fala dela – talvez porque
pouco ela seja – e sua figura fica muito marcada no final da história. Quem teve a oportunidade de ler o livro,
consegue perceber, o quanto o autor é descritivo e talvez o personagem menos
descrito seja a própria. E, sem dúvida, o personagem que surge como conexão dos
fatos seja, na verdade, o terrível
Cassi.
“Na vida, ele só via o seu prazer, se esse prazer era o mais imediato
possível”
O livro começa ao falar do pai da
Clara, Joaquim dos Anjos – a qual se
ouve bem mais do que a própria também – e de sua esposa que conversavam com um
grupo de amigos sobre quem Clara
poderia se casar e surgiu o nome de Cassi.
Mas, é o típico personagem que nenhum pai quer apresentar a filha. Este é um
jovem que gosta de escrever modinhas e tocar violão, não trabalhar, seduzindo
jovens casadas ou não e destruindo as vidas delas. Algumas ficam grávidas,
outras desonradas, e contam-se histórias até de morte entre os familiares das
vitimas. Todavia, pela ignorância de
ser um carteiro negro, que não lê muito jornal, Joaquim dos Anjos não tem
consciência desses relatos.
“Inútil é repetir que Cassi não tinha nenhuma espécie de amizade por
esses rapazes, não pela baixeza de caráter e de moral deles, no que ele
sobrelevava a todos; mas pela razão muito simples de que sua natureza moral e
sentimental era sáfara e estéril”
A riqueza descritiva do livro aponta também a uma fertilidade nas elaborações dos
personagens, contando desde o local onde tudo ocorre, no subúrbio do Rio de
Janeiro até da história da família do Cassi e das pessoas que frequentam o bar
do “Seu Nascimento”. Confesso que tive dificuldade
de manter o ritmo da história no meio dos detalhes e personagens periféricos,
mas é também o seu valor conseguir
situar a pessoa tão dentro dos acontecimentos. E, principalmente, porque as
descrições eram muito divertidas,
sinceras e sem nenhum pouco de idealismo até mesmo ironizando, como no caso
do poeta Flores que é sempre prolixo e que, no fim, ao dar um depoimento para a
polícia, acaba sendo detido para um hospital psiquiátrico porque não dizia
“coisa com coisa”. E isso se segue de forma muito a entreter e se aproximar
sentimentalmente dos personagens.
Coloquei aqui abaixo parte da descrição de um personagem periférico para
observar o que digo:
“Zé Mateus era um verdadeiro imbecil. Não ligava duas ideias, não
guardava coisa alguma dos acontecimentos que assistia. A sua única mania era
beber e dizer-se valente. (...) Totalmente inofensivo, quase inválido pela sua
imbecilidade nativa e pela bebida (...). Era um ex-homem e nada mais”
Retomando a história, Joaquim dos
Anjos chama Cassi para o aniversário de Clara. Esse momento é bem descritivo
para caracterizar a pobreza e a simplicidade dos personagens que ali se
encontram como também como os pais da menina se portam para com ela. O exemplo
claro disso é que, na festa, quase não há jovens na idade de Clara, já que a
mesma quase não sai de casa, tendo uma vida muito pacata.
“Entrou. Houve um estremecimento que percorreu os convivas, como um
choque elétrico. Todas as moças, das mais diferentes cores, que ali a pobreza e
a humildade da condição esbatiam e harmonizavam, logo o admiraram na sua
insignificância geral, tão poderosa é a fascinação da perversidade nas cabeças
femininas. Nem césar Bórgias, entrando mascarado, num baile à fantasia, dado
por seu pai, Alexandre VI, no Vaticano, causaria tanta emoção. Se não disseram
“É Cesar! É Cesar!” – codilharam: “é ele! É ele!”
Durante a festa, Cassi não resiste e tenta seduzir clara
com o violão e cantando uma modinha e, Marramaque, que é padrinho de Clara,
percebe as intenções dele e tenta o descreditar na festa, sendo irônico e o
chamando de burro em um poema.
Assim, o jovem conquistador se sente ainda mais desafiado a conquistar a
aniversariante, custe o que custar.
“O que espantava, na ação de Marramaque, era sua coragem. Ele,
semi-aleijado, velho, pobre, lançava um solene desafio àquele valdevino forte,
são, habituado a rolos e rixas”
Contando com sua influência e,
apesar de ser minado pela família e amigos da jovem, Cassi procura quem ele
poderia utilizar para chegar em seus objetivos finais. Paralelamente, a jovem
Clara se apaixona pela forma que o
mesmo chegara nela no aniversário, romanceado dentre versos, não acreditando
que ele era, de fato, tão ruim quanto os outros diziam.
“Cassi era dessa laia [mulherengo]: entretanto, Clara, na sua
justificável ignorância do mecanismo da nossa vida social, julgava que seus
pais eram com ele injustos e grosseiros.”
Nesse momento é que o autor
finalmente começa a trabalhar quem era Clara,
já o leitor muito ciente de que Cassi é um personagem perigoso, manipulador e
falso. E, vendo a ingenuidade da menina, é quase impossível não desejar que o
sedutor desapareça da vida dela, já que, se depender dela, se entregará
completamente ao criminoso.
“ O seu ideal na vida não era adquirir uma personalidade, não era ser
ela, mesmo ao lado do pai ou do futuro marido. Era construir função do pai,
mesmo solteira, e do marido, quando casada. (...) Clara era uma natureza
amorfa, pastosa, que precisava mãos fortes que a modelassem e fixassem.”
Porém, mesmo com a proteção de
Marramaque, ele encontra um espaço para conquistar a menina, enquanto ela é
tratada pelo Meneses, dentista, da dor de dente crônica que a perturba. Este
tem contato com Cassi e se deixa vender para trocar carta entre o novo “casal”.
Nestas cartas promete casar com Clara,
dizendo que a ama e que queria um futuro ao lado dela, mesmo sendo negra, pobre
e simples. Isso a encantou completamente e, aos poucos, os pais são obrigados a
aceitar a relação deles dois. Todavia, o padrinho
continua se opondo a Cassi, mantendo-se como barreira na relação.
“Ela se enganava porque não conhecia a vida. Para se escapar aos crimes
de Cassi, basta um pouco de proteção e que o acusado seja bastante cínico e
ousado.”
Um dia, Marramaque aparece morto,
desfigurado no meio da rua e, apesar de ninguém ter suspeita explícita de quem
havia matado, Clara imaginara que era seu noivo – e este justificava dizendo
que tal assassinato foi feito pelo bem ao amor
deles! Sem a única pessoa que estava impedindo a relação, os pais permitem que
Cassi encontre com a jovem e o óbvio acontece: ele a engravida e some, deixando-a desonrada e só. Por algum tempo
Clara, tapada, acredita que o noivo iria voltar, mas descobre, por meio
de outros, que este viajou para São Paulo.
O desespero toma conta da família
da moça, indo até a do rapaz, que o havia expulsado de casa, para conversar
sobre a melhor opção a se fazer em tal hora. Porém, ao ver a jovem Clara, negra
e pobre, a tratam com desdém, não
desejando ajudar, deixando a personagem principal, que nada tem de mais
importante, chorosa e sofrida.
“Todas essas perguntas, ela formulava e não lhes dava resposta. Cassi
partira, fugira... Agora é que percebia bem quem era o tal Cassi. O que os
outros diziam dele era pura verdade. A inocência dela, a sua simplicidade de vida,
a sua boa fé, e o seu ardor juvenil tinham-na completamente cegado.”
Apesar do final infeliz e ter me dado até pesadelo , a
empatia pelos personagens e a forma me faz dizer que ler tal livro foi uma
experiência muito boa. Não me
identifiquei tanto quanto os livros que anteriormente me debrucei, mas foi interessante me arriscar em outro autor.
Para a próxima leitura, farei outro risco, mudando outra vez
de escrita. Meu próximo livro é O
Normalista, de Adolfo Caminha, contemporâneo
de Lima Barreto. Vamos ler juntos?
Abraços!
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