A coitada da “Clara dos Anjos” (LIMA BARRETO, 1948)

Eu sinto pena da Clara dos Anjos, especialmente porque nem personagem principal da história é de fato. Pouco se fala dela – talvez porque pouco ela seja – e sua figura fica muito marcada no final da história.  Quem teve a oportunidade de ler o livro, consegue perceber, o quanto o autor é descritivo e talvez o personagem menos descrito seja a própria. E, sem dúvida, o personagem que surge como conexão dos fatos seja, na verdade, o terrível Cassi.

“Na vida, ele só via o seu prazer, se esse prazer era o mais imediato possível”

O livro começa ao falar do pai da Clara, Joaquim dos Anjos – a qual se ouve bem mais do que a própria também – e de sua esposa que conversavam com um grupo de amigos sobre quem Clara poderia se casar e surgiu o nome de Cassi. Mas, é o típico personagem que nenhum pai quer apresentar a filha. Este é um jovem que gosta de escrever modinhas e tocar violão, não trabalhar, seduzindo jovens casadas ou não e destruindo as vidas delas. Algumas ficam grávidas, outras desonradas, e contam-se histórias até de morte entre os familiares das vitimas. Todavia, pela ignorância de ser um carteiro negro, que não lê muito jornal, Joaquim dos Anjos não tem consciência desses relatos.

“Inútil é repetir que Cassi não tinha nenhuma espécie de amizade por esses rapazes, não pela baixeza de caráter e de moral deles, no que ele sobrelevava a todos; mas pela razão muito simples de que sua natureza moral e sentimental era sáfara e estéril”

A riqueza descritiva do livro aponta também a uma fertilidade nas elaborações dos personagens, contando desde o local onde tudo ocorre, no subúrbio do Rio de Janeiro até da história da família do Cassi e das pessoas que frequentam o bar do “Seu Nascimento”. Confesso que tive dificuldade de manter o ritmo da história no meio dos detalhes e personagens periféricos, mas é também o seu valor conseguir situar a pessoa tão dentro dos acontecimentos. E, principalmente, porque as descrições eram muito divertidas, sinceras e sem nenhum pouco de idealismo até mesmo ironizando, como no caso do poeta Flores que é sempre prolixo e que, no fim, ao dar um depoimento para a polícia, acaba sendo detido para um hospital psiquiátrico porque não dizia “coisa com coisa”. E isso se segue de forma muito a entreter e se aproximar sentimentalmente dos personagens.  Coloquei aqui abaixo parte da descrição de um personagem periférico para observar o que digo:

“Zé Mateus era um verdadeiro imbecil. Não ligava duas ideias, não guardava coisa alguma dos acontecimentos que assistia. A sua única mania era beber e dizer-se valente. (...) Totalmente inofensivo, quase inválido pela sua imbecilidade nativa e pela bebida (...). Era um ex-homem e nada mais”

Retomando a história, Joaquim dos Anjos chama Cassi para o aniversário de Clara. Esse momento é bem descritivo para caracterizar a pobreza e a simplicidade dos personagens que ali se encontram como também como os pais da menina se portam para com ela. O exemplo claro disso é que, na festa, quase não há jovens na idade de Clara, já que a mesma quase não sai de casa, tendo uma vida muito pacata.

“Entrou. Houve um estremecimento que percorreu os convivas, como um choque elétrico. Todas as moças, das mais diferentes cores, que ali a pobreza e a humildade da condição esbatiam e harmonizavam, logo o admiraram na sua insignificância geral, tão poderosa é a fascinação da perversidade nas cabeças femininas. Nem césar Bórgias, entrando mascarado, num baile à fantasia, dado por seu pai, Alexandre VI, no Vaticano, causaria tanta emoção. Se não disseram “É Cesar! É Cesar!” – codilharam: “é ele! É ele!”

Durante a festa, Cassi não resiste e tenta seduzir clara com o violão e cantando uma modinha e, Marramaque, que é padrinho de Clara, percebe as intenções dele e tenta o descreditar na festa, sendo irônico e o chamando de burro em um poema. Assim, o jovem conquistador se sente ainda mais desafiado a conquistar a aniversariante, custe o que custar.

“O que espantava, na ação de Marramaque, era sua coragem. Ele, semi-aleijado, velho, pobre, lançava um solene desafio àquele valdevino forte, são, habituado a rolos e rixas”

Contando com sua influência e, apesar de ser minado pela família e amigos da jovem, Cassi procura quem ele poderia utilizar para chegar em seus objetivos finais. Paralelamente, a jovem Clara se apaixona pela forma que o mesmo chegara nela no aniversário, romanceado dentre versos, não acreditando que ele era, de fato, tão ruim quanto os outros diziam.

“Cassi era dessa laia [mulherengo]: entretanto, Clara, na sua justificável ignorância do mecanismo da nossa vida social, julgava que seus pais eram com ele injustos e grosseiros.”

Nesse momento é que o autor finalmente começa a trabalhar quem era Clara, já o leitor muito ciente de que Cassi é um personagem perigoso, manipulador e falso. E, vendo a ingenuidade da menina, é quase impossível não desejar que o sedutor desapareça da vida dela, já que, se depender dela, se entregará completamente ao criminoso.

“ O seu ideal na vida não era adquirir uma personalidade, não era ser ela, mesmo ao lado do pai ou do futuro marido. Era construir função do pai, mesmo solteira, e do marido, quando casada. (...) Clara era uma natureza amorfa, pastosa, que precisava mãos fortes que a modelassem e fixassem.”

Porém, mesmo com a proteção de Marramaque, ele encontra um espaço para conquistar a menina, enquanto ela é tratada pelo Meneses, dentista, da dor de dente crônica que a perturba. Este tem contato com Cassi e se deixa vender para trocar carta entre o novo “casal”. Nestas cartas promete casar com Clara, dizendo que a ama e que queria um futuro ao lado dela, mesmo sendo negra, pobre e simples. Isso a encantou completamente e, aos poucos, os pais são obrigados a aceitar a relação deles dois. Todavia, o padrinho continua se opondo a Cassi, mantendo-se como barreira na relação.

“Ela se enganava porque não conhecia a vida. Para se escapar aos crimes de Cassi, basta um pouco de proteção e que o acusado seja bastante cínico e ousado.”

Um dia, Marramaque aparece morto, desfigurado no meio da rua e, apesar de ninguém ter suspeita explícita de quem havia matado, Clara imaginara que era seu noivo – e este justificava dizendo que tal assassinato foi feito pelo bem ao amor deles! Sem a única pessoa que estava impedindo a relação, os pais permitem que Cassi encontre com a jovem e o óbvio acontece: ele a engravida e some, deixando-a desonrada e só. Por algum tempo Clara, tapada, acredita que o noivo iria voltar, mas descobre, por meio de outros, que este viajou para São Paulo.
O desespero toma conta da família da moça, indo até a do rapaz, que o havia expulsado de casa, para conversar sobre a melhor opção a se fazer em tal hora. Porém, ao ver a jovem Clara, negra e pobre, a tratam com desdém, não desejando ajudar, deixando a personagem principal, que nada tem de mais importante, chorosa e sofrida.   

“Todas essas perguntas, ela formulava e não lhes dava resposta. Cassi partira, fugira... Agora é que percebia bem quem era o tal Cassi. O que os outros diziam dele era pura verdade. A inocência dela, a sua simplicidade de vida, a sua boa fé, e o seu ardor juvenil tinham-na completamente cegado.”

Apesar do final infeliz e ter me dado até pesadelo , a empatia pelos personagens e a forma me faz dizer que ler tal livro foi uma experiência muito boa. Não me identifiquei tanto quanto os livros que anteriormente me debrucei, mas foi interessante me arriscar em outro autor.

Para a próxima leitura, farei outro risco, mudando outra vez de escrita. Meu próximo livro é O Normalista, de Adolfo Caminha, contemporâneo de Lima Barreto. Vamos ler juntos?

Abraços!

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